Vestuário e gênero: história e sexo

Artigo

Adilson José de Almeida

O objetivo desta comunicação é discutir o vestuário, especificamente as roupas do século 19, como um dispositivo material de modelação do corpo utilizado na construção histórica das diferenças de gênero. A modelação do corpo não significa somente alterações das suas características físicas através de peças como, por exemplo, os espartilhos que alongavam a silhueta feminina ao comprimir tórax e abdome. Neste caso poderíamos falar propriamente de modelação, mas faremos referência principalmente àquilo que ocorria mais freqüentemente, alterações na percepção das dimensões do corpo - volume, altura etc - de suas formas - retas, arredondadas, alongadas, mistas etc - e de sua composição - ênfase em determinadas partes do corpo descobrindo-as ou, ao contrário, cobrindo-as com maior quantidade de tecidos ou, ainda, através de aplicação de cores fortes etc.

Aqui tentaremos apenas formular o problema que nos interessa no momento. Neste sentido, inicialmente apontaremos as principais características atribuídas às roupas daquele período tal como aparecem em dois historiadores da moda e tentaremos, em seguida, contrastá-las com certos desenvolvimentos de pesquisa sobre história do corpo. Quanto ao vestuário nos basearemos em considerações de James Laver, historiador inglês, autor de importantes obras de divulgação em história do vestuário, dentre as quais tem destaque e está traduzida para o português A roupa e a moda2; e de Gilda de Mello e Souza, cuja pesquisa sobre moda realizada nos anos 50 e publicada mais recentemente com o título O espírito das roupas permanece como um dos mais significativos trabalhos nesta área. Quanto à história do corpo comentaremos o trabalho de Thomas Laqueur, historiador da Universidade de Berkeley. Procuraremos mostrar como suas pesquisas sobre as transformações na representação do corpo feminino que se processaram no final do século 18 possibilitam novos encaminhamentos para os problemas referentes a vestuário, em especial vestuário feminino.

Vestuário feminino e preceitos morais

Um dos temas mais discutidos nos estudos sobre indumentária é a acentuada diferença entre as roupas femininas e masculinas no século 19, configurando dois padrões de vestuário bastante distintos e mesmo opostos, uma ruptura com os séculos anteriores nos quais as diferenças nos trajes de homens e mulheres não apresentavam contrastes tão demarcados. Gilda de Mello coloca a questão em termos de um dimorfismo sexual que acentuaria o antagonismo presente nas relações entre homens e mulheres.

No século anterior havia peças básicas tanto para o vestuário das mulheres quanto para o vestuário dos homens, por exemplo, saias e vestidos para as primeiras e casacos, coletes e calções para os segundos. Mas as aproximações eram bastante perceptíveis: meias e perucas eram comuns a ambos, estas últimas, peças de importância na indumentária, serviam para demarcar condição social e posição hierárquica. As roupas coloridas não eram ainda exclusividade das mulheres, na verdade, os homens se esmeravam também neste ponto, bem como na ornamentação pois brocados, bordados, rendas, babados e outros adornos cobriam suas roupas.

A roupa masculina surgirá da adoção do traje inglês de montaria denominado rinding-coat. Ela se fixará, então, basicamente, na casaca, que dará origem mais tarde ao paletó; na cartola, que é provavelmente uma modificação do chapéu deste traje, o crash-helmet3; e a partir de 1814, substituindo os calções, na calça comprida lançada pelo Duque de Wellington. Este será o conjunto predominante em todo o período, marcado pelas cores "pesadas", o preto, o cinza e pelo rápido abandono de tecidos leves como o cetim e a seda em favor do linho e da lã.

A imagem 1 mostra como já se estabelecia na primeira década do século o traje para homem. Os elementos decorativos têm ainda bastante destaque, veja-se, por exemplo, como foram concebidos para chamar a atenção os bordados nas calças, as duas fileiras de botões na casaca e a aba ondulada da cartola. O calçado utilizado é uma bota, o sapato não era moda ainda e, ao pescoço, um lenço era peça importante. Mas o colorido já desapareceu para as peças principais e daí por diante será elemento secundário. A imagem 2 traz dois modelos masculinos ingleses para 1884 e note-se como já neste quarto final de século as peças principais que compõem a indumentária não se alteraram essencialmente. A casaca, perdendo as abas, já estava se modificando para sobretudos, paletós e já apresentando estampas e tecidos mais variados, mas o tom cinza continuava predominando, inclusive no chapéu-côco ou chapéu de feltro que começavam a concorrer com a cartola4. Eram importantes, então, certos adornos, a bengala em especial, sempre mantida como componente da indumentária masculina (note-se a imagem 1), mas estes elementos tendem a uma maior discrição neste período.

A propósito da ornamentação podemos observar que não é que o homem tenha deixado, durante todo esse tempo, de aplicar-se sobre elementos da indumentária. Se as principais peças de roupas eram despojadas, havia um investimento nos acessórios - chapéus, bengalas, jóias, luvas, botões - em artigos de tabagismo como os charutos e no tratamento do rosto, dos bigodes, barbas e suíças. A moda - ou seja, a inovação - na indumentária masculina não era inexistente mas ocorria preferencialmente nestes elementos. As mudanças nas roupas dos homens parecem buscar, então, a contenção, tendendo a não apresentar a mesma multiplicidade de transformações que constataremos para o vestuário feminino, mas bem ao contrário, a reter determinados elementos e produzir uma certa uniformidade. O vestuário masculino se caracterizaria pela busca da simplicidade. O vestuário feminino era composto basicamente por vestidos, saias, blusas e coberturas de cabeça mas as mudanças que estas peças experimentavam ocorriam numa multiplicidade de elementos: nas modas sempre se sucediam diferentes tipos de laços, fitas, rendas, babados, cortes, formatos, cores, materiais (musselina, organdi, veludo, seda adamascada, gorgorão, tafetá, cetim). Havia, portanto, um investimento bem acentuado na indumentária feminina e que parece se orientar segundo uma permanente complexidade. Consideremos os seguintes modelos:

Vestido de crinolina, c.1860 Vestidos para senhoras e criança, março de 1877

Lembremos o traje feminino do começo do século na imagem 1. Um vestido branco de cintura alta, sem volume. Nele, apenas o bordado na barra, a manga curta bufante e o decote têm algum destaque. Peça de poucos elementos, assim como os sapatos sem saltos, ambos conferem a outras peças, o véu e o xale, uma presença mais ostensiva. Já este da imagem 3, em meados do século, ganha muito em volume com a inovação da crinolina, uma armação interna de metal que aumentava enormemente o volume das saias e que foi concebida como solução para os problemas de peso e calor ocasionados pelas várias anáguas utilizadas anteriormente para se obter o mesmo efeito. Esta era a principal característica deste tipo de vestido, talvez mais evidente do que a estampa e os trabalhos de bordado e debrum na barra. Na imagem 4 vemos que o aspecto geral dos vestidos já está completamente modificado no final da década seguinte, o volume é diferenciado e é efeito dos babados, franzidos, rendas que se estendem à cauda, o novo elemento componente destas peças.

As mudanças nas roupas femininas foram mais numerosas e continuaram posteriormente. Os chapéus tipo boneco que eram, então, utilizados foram substituídos por diferentes chapéus de pequenas dimensões que se transformaram em adornos para penteados, estes que haviam se tornado altos e volumosos na parte de trás. A crinolina foi modificada para a anquinha, desapareceria por alguns anos e voltaria como uma projeção horizontal na parte posterior dos vestidos mas agora incluindo alguns dispositivos concebidos para facilitar a movimentação das mulheres - o tipo Langtry recolhia-se quando a usuária se sentava e voltava automaticamente à sua forma quando ela se levantava. Em seguida a anquinha desapareceu, também os inúmeros drapeados horizontais e, assim, os vestidos se tornaram lisos; as saias, por um bom tempo assumiram a forma de sino. As anáguas retornariam uma vez mais, as dimensões das mangas voltariam a aumentar mas os chapéus permaneceram pequenos. As mudanças que assinalamos no parágrafo anterior bastam, no entanto, para indicar a complexidade como uma característica do vestuário feminino em relação ao masculino no período considerado.

O estabelecimento destes padrões não se deu de forma linear. Uma simplificação geral da indumentária se iniciou por volta de 1760 com a difusão do padrão inglês de vestuário, caracterizado por roupas utilizadas no campo onde residia a aristocracia inglesa, consideradas muito mais simples que os trajes de corte franceses que acabaram por substituir5. Esta simplificação ocorreu também no vestuário feminino, acentuadamente durante o império napoleônico, quando o traje da moda, como vimos, era uma vestido de cintura alta, sapato sem salto, chapéus simples. Ocorreram movimentos de contestação a esta tendência, como a oposição aristocrática dos macaronis na década de 1770 e dos incroyables no período da Revolução Francesa, os quais procuravam multiplicar os elementos componentes da indumentária e variar dimensões, formatos, cores. Já nos anos de 1820, apareceram os dândis, os quais se já nada tinham a ver com as roupas masculinas do século 18, se caracterizavam pela elegância e apuro no acabamento do vestuário, uma preocupação com a indumentária masculina que destoava do padrão que se impunha.

Só então se estabeleceu a hegemonia dos novos padrões feminino e masculino de vestuário que permaneceria até o final do século. Ainda assim, não deixaram de ser questionados por algumas experimentações que embora constituíssem práticas minoritárias foram significativas por tentarem apontar e superar os limites definidos para a concepção das roupas no período. A senhora Bloomer, por exemplo, propôs um traje feminino que denominou racional, mas não obteve sucesso e foi mesmo severamente criticada pois a parte inferior da peça que concebeu se assemelhava a uma calça. Sua idéia foi formulada na mesma época de predomínio da crinolina, que diferenciava saias e vestidos tanto quanto possível desta peça masculina.

Maior repercussão social obteve a figura da lionne, uma mulher considerada ativa, que praticava equitação, por exemplo, esporte da moda em meados do século 19. Neste caso, no que diz respeito aos comportamentos desenvolvidos, temos também uma tentativa de escapar a um modelo hegemônico. As roupas femininas, seja pela multiplicidade de elementos dos quais se compunham seja pelas dimensões atingidas, tolhiam os movimentos das mulheres. Trata-se aqui do problema das táticas de distinção social pois a demonstração pública da ociosidade da esposa era um procedimento para demarcar o status social privilegiado do marido, questão que não desenvolveremos neste trabalho. Basta, no momento, apontarmos como a lionne procurava superar as limitações comportamentais impostas às mulheres.

A respeito deste assunto Laver julga paradoxal que as roupas femininas se constituíssem num empecilho à movimentação das mulheres justamente no período de desenvolvimento de inovações técnicas, sobretudo nos transportes - como andar confortavelmente num trem vestida numa saia armada com a crinolina? - e de intensa participação em conflitos sociais, duas características das sociedades européias da metade do século 19. Limitadora de certas possibilidades do corpo certamente a indumentária feminina era, mas não constituía um fato paradoxal pois estava associada ao fenômeno da distinção social como afirmamos e à construção histórica do gênero feminino, problema que abordaremos adiante. Nos anos de 1880 ainda ocorreram novas tentativas para modificação das roupas de homens e mulheres, nos referimos mais precisamente ao movimento estético e ao Movimento Traje Racional, que parecem de alguma forma associados pois o escritor Oscar Wilde foi identificado a ambos. Neste último havia a preocupação com aspectos considerados não-saudáveis da moda, seria o caso da utilização de espartilhos, por exemplo. O primeiro, em suas linhas gerais, propunha para o vestuário feminino penteados mais suaves, sapatos sem saltos, também a abolição dos espartilhos e um vestido de cauda longa então em voga, mas com uma forma mais solta e de mangas bufantes; para o masculino propôs calções até o joelho, casaco de veludo, gravata fluída e chapéu wideawake. Elaboradas em círculos muito estreitos de pessoas e contrárias a modelos bastante difundidos, estas concepções foram muito criticadas e até ridicularizadas.

O auge da diferenciação entre as roupas femininas e masculinas se deu aproximadamente entre as décadas de 1840 e 1890. Nesta última décadal o surgimento dos trajes esportivos trouxe novos elementos de aproximação entre estes dois padrões, embora as diferenças que os separavam não deixaram de marcar as transformações posteriores do vestuário nas primeiras décadas do século 20. Foi na década de 1880 que começaram a se difundir, especialmente na Inglaterra, as roupas especificamente concebidas para a prática de esportes. Surgiu o casaco de marujo para o iatismo e também apareceram trajes apropriados para tiro, críquete, ciclismo e outras modalidades de esporte.

Surgiram trajes esportivos também para as mulheres, roupas com corte masculino compostas basicamente de paletó, saia e blusa justa. James Laver observa admirado a adoção de aspectos da indumentária masculina que não seriam adequados para a prática esportiva: "O estranho é que, quando as mulheres iam realizar atividades ao ar livre, elas insistiam em usar os chapéus e os colarinhos masculinos brancos e altos. As roupas esportivas femininas eram em geral pesadas, feitas de tecido rústico ou tweed, sendo em cores normalmente escuras"6.

Em geral, se apresentam três considerações principais sobre esta diferenciação entre os vestuários masculino e feminino operada no século 19. A primeira é que a função de sedução se tornou quase que exclusiva do vestuário feminino e é nele predominante. Isto porque com a constituição e desenvolvimento das sociedades industriais, o trabalho se torna um valor fundamental na organização das práticas e representações. Atividade masculina, a mulher só passa a obter prestígio social na medida em que se insere no espaço doméstico, no desempenho dos papéis de esposa e mãe. Daí a importância em seduzir um homem para contrair matrimônio, assunto estudado com especial atenção por Gilda de Mello e Souza.

Já o domínio do homem é o espaço público. Neste, sua posição social não depende mais da condição de nascimento tal como ocorria na organização estamental anterior, mas sim de habilidades e conhecimentos pessoais, ou seja, do seu talento numa sociedade caracterizada pela mobilidade dos indivíduos entre as classes sociais. Suas roupas não são mais concebidas, então, para demarcar uma condição mas para colocar em evidência a personalidade, o pensamento, a inteligência. Ocorre, então, um despojamento das principais peças do vestuário masculino, a roupa do homem perde em grande parte sua função ornamental e deixa de ser um elemento empregado na sedução erótica. Mesmo os dândis aos quais no referimos anteriormente são exemplos destas mudanças. Não resta dúvida de que eles tinham uma preocupação muito maior com suas roupas mas, ao mesmo tempo, já estavam distantes dos macaroni do século anterior pois seus trajes eram comparativamente mais simples na composição e cores, embora o corte fosse irrepreensível e um tecido leve como o cetim fosse muito utilizado.

É então, a mulher que mobiliza seu corpo e suas roupas para atrair o olhar masculino. A roupa passa a funcionar para ela como um dispositivo material para erotizar o seu corpo. Desta forma, dependendo da composição das peças, a roupa poderia: 1) aumentar o volume dos quadris através do uso das anáguas, da crinolina, das anquinhas e também de folhos e babados. 2) diminuir a dimensão da cintura, por exemplo, quando se a contrasta com mangas de grandes dimensões. 3) exibir e esconder, alternativamente, pernas e pés com a oscilação da crinolina. 4) focalizar determinadas partes do corpo, quando a própria movimentação da pessoa agitava rendas na barra de saias ou em decotes de vestidos e blusas. A segunda consideração é que esta dimensão erótica, desenvolvida em função do casamento, é intensamente mobilizada num momento especial, a festa social, oportunidade para as pessoas desenvolverem a corte amorosa: a mulher pode aplicar-se na atração dos homens - por exemplo, concebendo para si um exuberante vestido de noite - e estes, por sua vez, podem exercitar suas habilidades nos galanteios. Seria em momentos de exceção como a festa, quando se abrandava a rigidez do código moral estabelecido no período que, através do vestuário, se poderia exercer mais livremente o poder de sedução.

É este jogo entre sedução e repressão moral que Laver vê no século 19 e é a terceira consideração que se costuma fazer sobre o vestuário. A questão aparece com intensidade nas transformações da moda em meados do século. No início da década de 1820, na moda feminina a cintura alta para os vestidos foi abandonada e as roupas começaram a afinar a cintura feminina. Voltaram os espartilhos, as saias se tornaram mais amplas e as mangas fofas. Nos anos seguintes as dimensões destas peças aumentaram continuamente, a manga chegou à forma conhecida como pernil de carneiro, as saias diminuíram o comprimento para ressaltar a largura e as abas dos chapéus se tornaram enormes. Esta moda predominante até os anos de 1830, afeita a um padrão do início do século que Laver denomina romântico e extravagante, começa a mudar e a dar lugar a outro padrão que seria marcado pela sobriedade, tranqüilidade e delicadeza da indumentária.

Ele observa que o maior recato que começa a caracterizar as roupas a partir dos anos de 1840 - para as mulheres mangas de menor amplidão, saias cobrindo os tornozelos; para os homens o definitivo abandono de cinturas apertadas, ombros almofadados, camisas de babados - é concomitante ao surgimento da crinolina que, como afirmamos logo acima, é um elemento da indumentária que erotiza o corpo da mulher. Segundo James Laver, os vestidos e saias nos quais se utilizava este dispositivo simbolizariam duplamente o feminino, tanto pela referência à fertilidade sugerida pelo aumento do volume na região dos quadris, quanto pelo que seria um estratagema de proteção, a amplidão que indicaria a intenção de criar uma barreira às investidas masculinas e, portanto, de estabelecer uma distância física e moral em relação aos homens.

Ele nota, então, que a nova estrutura dessas peças de roupa favorecia a oscilação das mesmas e que se conceberam pantalonas para impedir que as pernas aparecessem; ainda assim a mulher, na sua própria movimentação exibia e escondia, alternativamente, os seus pés, que se tornaram uma zona erógena do corpo feminino.

É aí que Laver diz que esta peça é um elemento da indumentária que erotiza o corpo da mulher, não nos faz esquecê-lo como poderíamos supor pelo volume de tecido que o recobria e não sinalizaria apenas a sexualidade voltada para a reprodução. Enfim, o que ele está afirmando é que a função erótica do vestuário voltaria sub-repticiamente em meio à moral dominante, através, por exemplo, destas brechas na organização do mundo material.

É preciso observar, ainda que apenas de passagem, a crítica de Gilda de Mello e Souza à idéia de que à mulher caberia no século 19 um papel exclusivamente passivo sob a dominação masculina articulada à diferenciação sexual, argumentando que mesmo numa prática social de submissão das mulheres haveria a possibilidade destas desenvolverem um comportamento ativo. Por exemplo, na sedução de um companheiro para realizar seu casamento elas poderiam compor sua indumentária não só para atraí-lo mas como uma forma de auto-expressão, podendo desenvolver com este procedimento um estilo de existência; e, já o casal formado, o encanto feminino e a determinação masculina se uniriam, se tornariam interdependentes e, sem romper com sua condição subalterna, a mulher colheria frutos na cooperação com o marido no objetivo comum de ascensão social.

Estas considerações não visam, seguramente, a legitimar uma relação de domínio, ao contrário, apontam para brechas e pontos de tensão que poderiam transformá-la. Quanto à pesquisa em vestuário, indicam a necessidade de avançarmos nas investigações e reflexões sobre o problema das relações de poder entre os gêneros.

Vestuário e construção do gênero

É a propósito destas concepções sobre o vestuário do século 19 que as análises de Thomas Laqueur podem contribuir de forma muito importante. Ele procura demonstrar que na Europa, da Antigüidade até o final do século 18, as relações entre homem e mulher não eram compreendidas em termos de diferença de gêneros mas sim de diferença de grau entre seres do mesmo sexo - só existia o sexo masculino. É nas mudanças no plano das representações que surgem os gêneros e suas diferenças, representações que, assinala o autor, estão imbricadas às práticas políticas, sociais, culturais que vão se desenvolvendo a partir de então e que são as nossas hoje em dia. A questão que vai se esboçando a partir destas considerações de Thomas Laqueur é o nascimento histórico da diferença de gêneros, uma forma específica de representação da relaç&aatilde;o homem/mulher.

A representação dominante até o século 18 é constituída por duas formas de saber, uma fisiologia do prazer e uma anatomia das homologias sexuais. Nelas homem e mulher são um único sexo e não constituem gêneros distintos. Eles se diferenciam quanto a quantidade de calor presente em seus corpos, princípio que organiza todo o pensamento fisiológico do período e que distribui os seres vivos na cadeia hierárquica que formam no mundo. Assim, entre os animais, os humanos são os mais perfeitos e entre estes, os homens são mais perfeitos do que as mulheres em virtude de seu excesso de calor em relação a elas.

É este princípio do calor que sustenta duas idéias norteadoras sobre a relação homem/mulher. Primeira: existe apenas uma genitália para ambos, a única diferença está no fato de que os órgãos sexuais femininos estão no interior do corpo e os masculinos no exterior. Entende-se que o calor da mulher é insuficiente para extrusão dos seus órgãos sexuais (com isso, ao mesmo tempo, a natureza providenciaria um lugar seguro para o feto - o útero). Há uma homologia dos órgãos sexuais femininos e masculinos, a diferença é uma diferença de lugar, topológica. Nesta concepção os órgãos genitais femininos não eram, em geral, nem mesmo designados por uma palavra específica. Galeno, médico do século 2, se referia aos genitais femininos e masculinos utilizando a mesma palavra, orchis. Bem mais tarde, já no século 17, um importante físico da época, Regnier de Graaf, ainda denominava os ovários femininos de testiculi.

A segunda idéia é a seguinte: há necessidade do prazer sexual, meio de aumentar a quantidade de calor no corpo para garantir a reprodução. Era legítimo e recomendável excitar a mulher para assegurar o sucesso da fecundação. Esta idéia era plenamente admitida entre os físicos e fisiologistas do final do século 18. Albrecht von Haller, um dos maiores nomes da biologia deste período, interpretava o orgasmo feminino como um sinal de que o óvulo havia sido expelido do ovário. Continuava a se atribuir, ainda, importância fundamental ao prazer como condição para a reprodução.

Mas é nesta mesma época que podemos constatar a formulação de outras demandas sobre o corpo feminino e seus prazeres. No iluminismo, por exemplo, a mulher passa a desempenhar um papel fundamental no surgimento da civilização e é, então, que a representação sobre ela começa a mudar. Em Rosseau, a passagem do estado de natureza para o estado de civilização dependeu do decoro, da timidez da mulher; em Diderot o surgimento do desejo individual, do casamento e da família só ocorreu quando a mulher passou a escolher um único homem para seu companheiro. O prazer feminino tende aí a ser encarado como obstáculo para o processo civilizacional.

É, no entanto, no início do século 19 que a antiga representação da relação homem/mulher começa a ser abalada, não em função das novas elaborações filosóficas, mas sim pela biologia, através das, então, recentes descobertas sobre reprodução animal que serão aproximadas no decorrer do tempo à reprodução humana e conduzirão a uma nova representação do corpo feminino. A descoberta fundamental destacada por Laqueur é a verificação de que alguns mamíferos ovulavam espontaneamente em períodos recorrentes, independentemente de intercurso sexual, concepção ou prazer. As pesquisas vinham ocorrendo desde as primeiras décadas do século e foi em 1843 que Theodor Bischoff em suas experiências com cães demonstrou a ocorrência normal de ovulação espontânea em mamíferos. Isto significa que se um fenômeno da reprodução como a ovulação era espontâneo e, ao mesmo tempo, uma ocorrência normal do organismo, se abria a possibilidade de interpretar o sistema reprodutivo como um mecanismo próprio do corpo das fêmeas que independeria do objetivo da fecundação ou da intervenção de algo externo a ele como o prazer sexual.

O ponto que nos interessa aqui é o fato de que esta evidência para mamíferos em geral foi estendida, sem nenhuma demonstração direta, para o grupo humano, às mulheres. A ovulação espontânea em mulheres era já um objeto de considerações em pesquisas biológicas mas até aquele período era entendida como uma ovulação anômala, uma forma de sangramento feminino através do qual o corpo da mulher expelia excesso de materiais. Como, agora, a menstruação passa a ser um mecanismo regular e próprio da mulher e não uma ovulação anômala, esta produção de óvulos passa a ser, por sua vez, interpretada como o equivalente do calor nos animais e também já não dependerá mais de intercurso sexual ou fecundação, como se supunha até então.

Isto significa que perdia validade um aspecto básico da antiga fisiologia, a necessidade do prazer feminino para a reprodução. Também as homologias sexuais dos órgãos masculinos e femininos são descartadas. Os ovários nos mamíferos serão cada vez mais vistos como um centro de controle autônomo da reprodução nas fêmeas. Nas mulheres, especialmente, passarão a ser concebidos como a própria essência da feminilidade. Um biólogo francês, Achilles Chereau, declarará em meados do século: "é unicamente por causa do ovário que uma mulher é o que ela é". Walter Heate, zoólogo da Universidade de Cambridge e militante anti-sufragista concluirá: "O sistema reprodutivo não é só estrutural mas funcionalmente diferente no Homem e na Mulher; e desde que todos os órgãos e sistemas de órgãos são afetados por este sistema, é certo que Homem e Mulher são essencialmente diferentes" 7.

Estava nascendo o que Laqueur denomina biologia da incomensurabilidade. A mulher agora constitui um sexo diferente do homem.

O que ocorre no século 19 na relação homem/mulher é o surgimento histórico de um sexo, o feminino, condição para a elaboração do problema da diferença de gêneros8. É esta mudança histórica que deve ser objeto de reflexão. No que diz respeito ao uso de vestuário, a sedução, o erotismo não são sub-reptícios ou só aparecem plenamente em momentos de exceção como as festas. Na verdade, as roupas são elementos materiais que constróem no cotidiano a representação da mulher como sexo, e logo gênero, distinto do homem. É o que explica a recorrência, a insistência com que aparecem relacionadas à sedução e ao erotismo.

Sobre este ponto, consideraremos rapidamente duas caricaturas reproduzidas por James Laver.

Caricatura Uma esquina

Caricatura Um andar para fazer castigada pelo vento, 1864 virar todas as cabeças! 1860

Cabe ressaltar, antes de mais nada, que estas imagens são apenas dois bons exemplos relativos à representação da mulher no século 19. Elas não são excepcionais, ao contrário, caricaturas como estas eram muito freqüentes no período.

É conveniente observarmos também sobre a caricatura tomada como fonte para a pesquisa, que ela permite a análise de padrões visuais e cognitivos e, neste sentido, representa uma vantagem para os encaminhamentos iniciais que desejamos propor. As deformações obtidas através do exagero das características físicas de um referente produzem seus efeitos cômicos através do "deslocamento" de referências habituais e supõem, para serem compreendidas, um código comum entre artista e público. A comunicação entre eles começa a se estabelecer, portanto, a partir dos elementos deste código, entre os quais se encontram as representações mais gerais compartilhadas por ambos.

No caso das duas imagens que nos interessam no momento, vemos que o erotismo é um dos seus aspectos mais importantes. Na primeira, ele aparece como uma segunda verdade ainda mais reveladora do que aquela que é objeto de destaque no desenho. Neste, um certo ridículo aparece na adesão irrestrita à moda, numa certa fatuidade em seguir um comportamento coletivo. Fragilidade engraçada e risível das mulheres em seguir a multidão. Mas revelar um aspecto do comportamento da mulher é, agora revelar a natureza de um ser. O que faz o caricaturista? Primeiro ele nos diz que seria muito engraçado se revelássemos como se comportam as mulheres e como elas são, de fato. Em seguida, continuando com sua enquête, inventa uma situação e levanta suas saias para vermos o que se passa com todas elas. É nos aproximando do corpo da mulher, daquilo que ela tem de mais específico, é assim que o nosso autor imagina nos conduzir a uma verdade. Nesta imagem, portanto, verdade e erotismo se remetem e se esclarecem mutuamente.

Na segunda caricatura a mulher aparece referida à sedução amorosa. Os dois cavalheiros se acercam da dama, mas são obrigados a circular em torno dela como que buscando um ponto favorável à aproximação. A situação é engraçada pois sugere, de início, um impedimento definitivo a qualquer abordagem, não só fisicamente em função da estrutura da saia, mas também moralmente em virtude da proteção que a mulher estabelece para si, indicando qual seria a sua intenção. Mas se há obstáculos eles não são intransponíveis, dado que o corpo não só não é recusado efetivamente como, na verdade, é reintroduzido duplamente em cena. Considere-se o pé da moça aparecendo, ainda que discretamente: ele sinaliza a presença de um corpo e nos faz lembrar que a peça de roupa oscila, não é um elemento passivo, ao contrário, ela chama a atenção sobre o corpo que a movimenta.

O estratagema da sedução funciona plenamente na situação concebida pelo artista e nela a mulher mais uma vez está no centro das atenções. O que estes dois exemplos nos indicam é que a pesquisa sobre vestuário deve, então, se voltar com mais ênfase para a dimensão erótica das roupas no que diz respeito à análise da representação da mulher a partir do século 19. Mas devemos aqui, longe de partirmos das diferenças entre masculino e feminino, examinar como elas são socialmente construídas através das peças de indumentária utilizadas por homens e mulheres. É avaliando criticamente novas abordagens na reflexão sobre o corpo que a história do vestuário poderá contribuir com os desenvolvimentos que se verificam nos estudos sobre gênero.

Bibliografia

LAQUEUR, Thomas & GALLAGHER, Catherine (ed.) - The making of the modern body: sexuality and society in the nineteenth century.Berkeley: University of California Press, 1987, 242p.

LAVER, James. A roupa e a moda: uma história concisa. Tradução Por Glória Maria de Mello Carvalho. São Paulo: Companhia das Letras,1990, 285p., il.

SOUZA, Gilda de Mello e - O espírito das roupas: a moda no século dezenove. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, 255p., il.

Resumo da comunicação elaborada para a 5ª sessão do Simpósio Internacional Cidadania, Trabalho feminino e Globalização. Promovido pelo Centro de Estudos de Demografia Histórica da América Latina (CEDHAL) do Departamento de História da FFLCH/USP 28-30/10/97

Nos estudos sobre indumentária é já um ponto estabelecido que a moda em vestuário é um fenômeno majoritariamente feminino a partir do século XIX. Examinando algumas abordagens sobre este problema procuraremos desenvolver uma análise sobre a mobilização de objetos materiais, como as peças de roupa, na configuração das diferenças de gênero.

Currículo para o Simpósio Internacional Cidadania, Trabalho feminino e Globalização

Adilson José de Almeida

Mestrando em História Social do Departamento de História da FFLCH/USP, desenvolvendo pesquisa em cultura material sobre uniformes militares. Técnico de nível superior no Museu Paulista/USP, co-responsável pelas Áreas de Reserva Técnica do acervo de objetos. Tem trabalhos publicados nos Anais do Museu Paulista e Escritos (Departamento de Sociologia FFLCH/USP).

1 Comunicação elaborada para a 5ª sessão do Simpósio Internacional Cidadania, Trabalho feminino e Globalização

2 As imagens do nosso texto foram reproduzidas deste livro (vide bibliografia) onde se encontram nas seguintes páginas: imagem 1 (p.157); imagem 2 (p.205); imagem 3 (p.186); imagem 4 (p.196); imagem 5 (p.178); imagem 6 (p.183)

3 Devemos observar, no entanto, que o chapéu tricórnio, característico do século 18, já estava sendo substituído por outro de abas estreitas e copa alta que, retrospectivamente, lembra a cartola.

4 A casaca e a cartola iniciavam uma nova trajetória que transformaria ambas em peças de trajes de gala para festas sociais.

5 Historicamente a nobreza inglesa não se fixou em torno de uma corte real como a francesa, as pessoas residiam em suas propriedades rurais, daí as roupas sem bordados, babados, rendas, que permitiam atividades como a caça a raposa.

6 LAVER, James - A roupa e a moda, p.209

7 LAQUEUR, Thomas & GALLAGHER, Catherine (ed.) - The making of the modern body, p.31

8 Há, na verdade, uma problemática mais geral na passagem do século XVIII para o século XIX. James Laver assinala, a propósito de uma pintura de William Hogarth, As crianças Graham (1742), que "há pouquíssima distinção entre as roupas infantis e de adultos" (A roupa e a moda, p.134). Do ponto de vista da história do vestuário a criança como categoria social é outra questão a ser formulada.